Por que o Brasil é um país tão macumbeiro, mas tão intolerante?

Se não tem um macumbeiro na sua família, o macumbeiro é você. Essa afirmação pode até não ser 100% verdade em algumas regiões do país, mas cansei de ouvir histórias relacionadas a isso. Muita gente que conheço e que se diz “católica não praticante”, ou até mesmo parte de outros segmentos do cristianismo, já me contou algum relato de uma avó ou tia que era rezadeira, umbandista, candomblecista e às vezes até mãe de santo. Quando nos voltamos para o interior do país, relatos desse tipo vão ficando mais comuns.

 

Na maioria dessas histórias, com o passar das gerações, a religião principal da família passa a ser outra e os filhos e netos meio que varrem essa história pra baixo  do tapete, muita vezes nunca mais tocando no assunto. Nosso país tem uma história religiosa muito complexa e muito rica que permanece até os dias de hoje e atravessa vários momentos da colonização.

 

A Umbanda não nasceu, afinal, para levar a caridade aos mais humildes? A manifestação do espírito para a caridade, anunciada pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas em uma mesa branca kardecista, não tinha o objetivo de chegar aos mais pobres? Pois bem. O culto aos orixás do candomblé, ritos de nações africanas, feriados católicos, incorporação de entidades e rezas dos indígenas foram a mistura que abrigava a religiosidade das classes mais pobres da população durante séculos no Brasil¹. Nosso país é um dos poucos lugares do mundo em que se vai assistir uma palestra de mesa branca na terça-feira, tomar um passe com um preto-velho na sexta e à missa no domingo. Durante todo o tempo de colonização e império, o Catolicismo foi imposto como religião oficial²; mas era para o terreiro e para os compostos de ervas das curandeiras que a população mais pobre corria quando precisava enfrentar uma doença, sem condições de pagar um tratamento. Vivemos em um país que foi formado e moldado pela religiosidade das classes mais populares, que aqui sempre foram a maioria da população³.

 

Se não, por que temos o costume de usar branco na virada do ano? 

 

Por que, especialmente aqui no Rio de Janeiro, há também o costume de passar a virada na praia? 

 

Por que o acarajé é uma comida tão importante para a cultura e economia de Salvador, na Bahia?

 

Por que amarramos fitinhas do Bonfim no tornozelo e penduramos terços e amuletos no retrovisor do carro?

 

Por que mantemos medalhinhas de santos na carteira?

 

Por que vemos tantos carros com o adesivo de Zé Pelintra ou São Jorge colado na parte de trás? E ainda sobre São Jorge, aliás, por que fazemos tanta festa no seu dia se parte da Igreja Católica nem o considera mais um santo? 

 

Você foi levado à uma rezadeira quando criança para curar uma tosse, uma febre, para tirar o mau-olhado? Se lembra de tomar banho de rosa branca ou de pendurarem uma figuinha no berço de um parente?

 

Muita gente tem medo ou vergonha de assumir a Umbanda como sua religião; seja por receio da intolerância alheia, seja por pressão da família para participar de outra religião ou até mesmo porque não admitem para si mesmos que se identificam com essa fé, essa fé que foi associada à bruxaria, feitiçaria, trapaça, pobreza, taxada de primitiva, atrasada e tantas outras coisas por quem tinha poder e usava a Igreja como controle político. 

 

Nem sempre esses “fiéis ocultos” são as mesmas pessoas que falam em voz alta que macumbeiro vai pro inferno, que xingam e chutam cumbucas na rua ou que acusam os terreiros de crueldade contra os animais. Mas é verdade o que dizem por aí: quem vê uma agressão acontecer e não toma atitude alguma está, na verdade, ajudando o agressor. Ocultando sua fé, fingindo não ser parte dela para se proteger de um possível desrespeito, sendo conivente com quem propaga informações erradas sobre a Umbanda, você está sem perceber participando do crescente índice de intolerância religiosa no Brasil⁴. Você pode não estar junto com os grupos que entram em terreiros para quebrar louças e imagens, mas deixou de corrigir uma frase intolerante ou de defender sua fé daquela piadinha de mau gosto que ouviu por aí. 

 

Querer se proteger e fazer parte do considerado “normal” é um mecanismo comum de defesa, mas ver um ataque à sua fé e fingir que não é contigo é hipocrisia. Todos têm o direito de manter sua religião em segredo, principalmente em ambientes de trabalho. Mas se todo umbandista ou até conhecedores superficiais da religião aproveitassem as oportunidades de diálogo, quem sabe viveríamos em um país um pouquinho menos intolerante. De tanto esconder e abafar histórias de parentes e conhecidos com qualquer ligação com a Umbanda, as novas gerações se espantam ao descobrir e resgatar essas histórias. Um ótimo exemplo de minha própria família: poucas semanas atrás, meu pai mencionou ter encontrado, ainda pequeno,”uma cordinha de palha trançada e uns cordões de contas”, possivelmente um contra-egun e guias, escondidos nas coisas do pai. Esse meu avô já era falecido quando nasci, mas ninguém da família jamais sequer mencionou essa história. Provavelmente ele mesmo ocultou isso dos filhos e, se não fosse esse deslize, eu jamais saberia que tive um avô que passeou pela fé que hoje pratico.

 

Quem tem vergonha ou medo diz que até conhece, que frequenta, que vai, que gosta, mas nunca diz que é umbandista. Já ouvi gente dizer que só se consideraria umbandista se “trabalhasse como médium, mas só de frequentar não”. Imagina se só fosse evangélico quem é pastor, se só fosse católico quem é padre…

 

Um ou outro dirá, vagamente, que é “espírita” e não entrará em mais detalhes. Muitos dirão na cara dura que são “católicos não praticantes” só porque foram batizados ainda na infância, como se religião fosse algo que possam escolher por você. Cada um a seu tempo, cada um com sua fé. Sempre existirá quem bata no peito e diga, orgulhoso e feliz, que crê na Umbanda, nos guias e nos orixás. Ninguém é melhor do que ninguém e nenhuma religião é melhor que a outra.

 

Mas e você? Seu coração já sabe que você é umbandista?

 

Fontes:

1; http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132018000100353

2; https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Relacoes-entre-Igreja-e-Estado-no-Brasil/4/16090

3; http://www.ebc.com.br/cultura/2013/01/unico-a-incluir-populacao-escrava-censo-de-1872-e-disponibilizado-ao-publico

4;

https://oglobo.globo.com/sociedade/denuncias-de-ataques-religioes-de-matriz-africana-sobem-47-no-pais-23400711

 

por

Talita Emrich é médium da Casa de Caridade Portal de Aruanda, terapeuta nível III do Reiki e graduada em Literatura. Atualmente escreve os artigos sobre a espiritualidade aqui no Pontos de Umbanda.




2 Comments

  • Doris soares

    Parabens, Thalita.
    Sucesso com a coluna.
    Bjs

  • ERIKA LOPES EMRICH PORTILHO

    Amei o texto, Talita! É preciso que haja mais respeito e tolerância entre adeptos de diferentes religiões.
    Como diz no Hino da Umbanda: “A Umbanda é paz e amor(…)
    Tenho muito amor e gratidão a Umbanda e meu coração sabe e bate mais feliz por eu ser também, umbandista.

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