Nanã fornece a lama para a modelagem do homem
Dizem que quando Olorum encarregou Oxalá de fazer o mundo e modelar o ser humano, o orixá tentou vários caminhos.
Tentou fazer o homem de ar, como ele. Não deu certo, pois o homem logo se desvaneceu.
Tentou fazer de pau, mas a criatura ficou dura. De pedra foi ainda pior.
Fez de fogo e o homem se consumiu. Tentou azeite, água e até vinho de palma, e nada.
Foi então que Nanã Burucu veio em seu socorro. Apontou para o fundo do lago com seu ibiri, seu cetro e arma, e de lá retirou uma porção de lama. Nanã deu a porção de lama a Oxalá, o barro do fundo da lagoa onde morava ela, a lama sob as águas, que é Nanã.
Oxalá criou o homem, o modelou no barro.
Com o sopro de Olorum ele caminhou.
Com a ajuda dos orixás ele povoou a Terra.
Mas tem um dia que o homem morre e seu corpo tem que retornar à terra, voltar à natureza de Nanã Burucu.
Nanã deu a matéria no começo, mas quer de volta no final tudo que é seu.
Disponível no livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi. Editora Companhia das Letras.
Apesar de ser uma história sobre a criação do homem, a principal simbologia trazida por esse mito é o de seu fim; o desencarne. O motivo apresentado para a morte do ser humano é que a lama de Nanã deve retornar ao seu lugar um dia. Mas o que significa essa metáfora? Por que essa velha senhora pede o material de volta, mesmo sabendo que isso significaria a morte das criaturas feitas por Oxalá?
Vamos pensar um pouco. Muita gente debate sobre a veracidade dos itãs, sobre eles terem acontecido realmente ou não, mas de qualquer forma sabemos que essas histórias dos orixás servem como guias para nosso comportamento no terreiro e na vida. Nanã, como é sabido, é a orixá ancestral da sabedoria. Representa o conhecimento dos mais velhos, por isso é carinhosamente chamada de vovó.
Quando essa sábia senhora diz a Oxalá que quer sua lama de volta, quando determina que a vida concedida a essas criaturas terá um tempo limitado, é porque sabe que a natureza precisa ser reequilibrada; não no sentido ambiental, mas no energético. Que benefício colheríamos em viver para sempre? O corpo material ficaria cada vez mais deteriorado, sem servir para cumprirmos nossa missão. O peso dos nossos erros do passado nos perseguiria, porque não teríamos como esquecê-los em uma nova encarnação. O benefício de esquecer nossas vidas passadas é justamente para não sobrecarregar nossa consciência.
No ocidente temos uma visão muito negativa da morte. Muito além da saudade de alguém que partiu, sentimos muita dor. Nos prendemos ao sofrimento, não aceitamos a despedida e tememos mais que tudo a nossa própria morte. Muita gente permanece em estado de luto por anos a fio após o falecimento de um ente querido. O processo do luto é muito importante, mas nosso sofrimento não pode impedir que nossa vida continue – nem atrapalhar a vida de quem já se foi. São vários os relatos de espíritos que não conseguem progredir na sua caminhada no mundo espiritual porque suas famílias permanecem chamando por eles.
Parte desse pesar é uma questão cultura: a maioria das religiões tradicionais do mundo ocidental acredita em uma única vida na Terra, o que torna o adeus muito mais difícil. Temos cemitérios cheios de estátuas de anjos chorando, viúvas em luto eterno usando preto pelo resto da vida e enterros de caixão aberto cheios de lágrimas. Durante um tempo foi moda contratar gente para chorar nos funerais porque se entendia que, quanto mais a pessoa fosse amada, mais sofrimento e agonia haveria em seu velório.
Um exemplo simples de outra visão sobre a morte: enquanto o nosso dia de finados tem uma atmosfera pesada e muito choro, no México a data é uma grande festa. Danças, roupas coloridas e mesas fartas antecedem a visita ao cemitério, onde são deixados presentes, comida e flores. A visão do povo mexicano é de que, nessa data, os entes queridos que já se foram podem vir à Terra visitar seus descendentes, e justamente por isso todos devem estar alegres e receptivos.
Existem as mais diferenciadas formas de luto em diversas culturas, mas todas abordam a mesma coisa: a despedida. O fim de um ciclo.
Para nós, reencarnacionistas, é desencarnando que retornamos ao mundo espiritual, temos a oportunidade de revisar a última encarnação, aprendemos com os erros cometidos, reconhecemos o progresso alcançado e nos preparamos para uma nova experiência em outra vida, outra família, outro país ou quem sabe até outro planeta, com novos objetivos.
Desencarnar para reencarnar, morrer para reviver, terminar para recomeçar.
Tudo isso faz parte de nossa evolução, e é parte muito importante.
“Nascer, viver, morrer, renascer ainda e progredir sempre, tal é a Lei.”
Foi essa a mensagem recebida por Kardec ao perguntar sobre a vida após a morte.
Que Nanã com sua sabedoria possa sempre nos guiar entre cada nascimento e cada morte.